Acordei sozinho & cedo precisando ir ao banheiro, a mente numa atividade ainda de sonho relembrando as imagens da noite dormida, feito uma tábua de madeira marcada por passos de dançarinos desesperados (o baile dos atormentados) meio esquisito numa espécie de ressaca - a pior ressaca ataca os que não bebem. Olhei pela janela e me animei com o sol escapando pela rua fazendo das árvores pequenas sombras.
A segunda é planejada. A terça idem. Todos eles o são, cada dia. Uma pequena agenda me ajuda, pequena e preta parece uma bíblia. Consulto com frequência, feito bíblia. É uma bíblia, uma bíblia de bolso com capa macia e conteúdo mastigável.
Pela manhã saio com a bicicleta não sem antes adivinhar: faz frio, que dia gelado! Me visto bem e embora a camisa esteja com marcas de graxa me sinto elegante. É preciso estar elegante para ser atendido nas lojas de hoje, é preciso disfarçar, embora continue sendo um marginal (pode se notar pelas manchas sobre as quais já falei e também pelos furos no tênis, pelo relógio grudado ao pulso - que não funciona, fechando o modelito com a calça desbotada já que não adianta de nada colocar sal na água de lavagem, elas desbotam assim mesmo).
Saí pra procurar uma moto e logo me enamoro por uma delas. Volto com a alma alegre, uma alegria parecida com a da tartaruga desvirada ou a do viajante-segue-caminho. Falo isso porque praticar a continuidade e pôr em prática meus planos me tira a ressaca o gosto ruim da boca e eu congelo em paz enquanto pedalo pelas ruas agora com a esperança brotando dos meus dedos e pés.
Já em casa preparo um almoço rápido e mais rápido ainda preciso sair correndo pois hoje é o único dia da semana em que posso visitar minha tia Rosaria que teve um derrame e está internada. Meu pai também vai e devemos nos encontrar na frente do hospital e assim é que acontece quando chego na porta do hospital e localizo ele com sua velha jaqueta e um boné enterrado na cabeça cobrindo os olhos e deixando ele, já um senhor, com uma aparência um tanto suspeita. Eu, um tanto menos marginal agora que cobri as manchas me junto a ele e já somos uma dupla nos cadastrando para a visita. A família Duran. Eu entro primeiro, ele depois. Dividimos assim os trinta minutos permitidos. Vou direto, viro à esquerda, esterelizo as mãos e dentro da enfermaria procuro por Rosaria.
Nas camas magras de ferro, pintadas de branco ficam os doentes, os velhos, os acidentados. A maioria sozinhos, de olhos fechados, encolhidos. Alguns de tão encolhidos parecem que vão sumir, virar uma bolinha de algodão e entrar dentro do travesseiro murcho. Talvez todos os travesseiros desse lugar estejam cheio de velhinhos. Os parentes entram, se repetem, alguma coisa sórdida acontece... Será a morte? Encontro minha tia e ela me reconhece a voz, abre os olhos, conversa um pouco fala do derrame mas logo a boca desobedece e é um sonho que sai pelos seus lábios, abrindo e fechando deixando se entrever a boca também murcha as palavras sem censura, uma espécie de loucura, uma espécie de liberdade, uma espécie de tristeza e de fim.
Um jovem paciente anda pelos corredores com o saiote azul e um tubo aparecendo pelo pescoço. É o único por aqui que anda, pelo visto. Tem cara de quem vai aprontar alguma. Ele me distrai. Todo o espaço mexe comigo, como sempre. Me assusta e me deprime. Numa outra cama vejo um senhor sentado, o pescoço engessado: lendo. Na outra um homem com a família ao redor atende ao celular; escapa ambição de seu olhar e naquele contexto ambição é vida. Procuro por essas pessoas; me parece que poderiam dividir a ala entre vivos e mortos.
Escapo antes do meu tempo se esgotar. Dou o crachá ao meu pai e vou pra casa dele. Estamos no outono. Os dias são claros, gelados e tem sol. Os fins de tarde de uma beleza serena e quieta, desenhando silhuetas no firmamento. Galhos de árvores pretos.
Já na casa encontro com a Lessy dormindo. Leio um jornal do dia, que meu pai compra com certa regularidade: o pior jornal de São Paulo, sem dúvida. Na casa dele, fico à toa. Surgem idéias à deriva. Gosto de ir ao mercado para ver uma das caixas que se chama Rebeca e é sem dúvida a mais bonita & feliz que trabalha naquele mercado decadente. Tenho pena dos herdeiros do Joanim. Não tenho pena da Rebeca porque ela parece feliz lá e eu tiro a conclusão de que se ela é feliz lá pode ser feliz em lugar qualquer. Fico imaginando como seria passar para buscá-la depois que o dia acabasse levar ela lá em casa pros meus pais verem sua felicidade gratuita e então deixá-la em sua casa, no centro da cidade, não sem antes pararmos em alguma praça feito soldadinho de chumbo (afinal estamos em são caetano a cidade das bonecas) e beijá-la a noite fria com ela me dizendo "gosto desse clima, parece a Europa" e eu respondendo, tudo na imaginação "a gente pode ir pra Europa, tenho um amigo lá."
Enfim, deixo os planos de lado e pego uma carona com meu CUNHADO, a pedido da minha IRMÃ, para ir até o banco sacar um dinheiro para o meu PAI. Família. Minha mãe chega põe outra roupa e vai pra academia. Conto pra ela sobre as motos, ela se oferece pra me ajudar a comprar. Enquanto isso cozinho pinhão na panela de pressão. Vai dar trabalho descascar. Vou comer com sopa de feijão, que minha irmã está fazendo.
Tenho um vestígio de ressaca que vale a pena ser ignorado.
ILUSTRAÇÃO POR EDUARDO MORARI +
Um comentário:
Como sempre, espetacular. Não sei se fico pior com ala de hospital ou com o Joanim, conhecendo os dois bem, mas tudo em seu texto atinge forte. Impacto.
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