A viagem de trem

havia demorado o mesmo que todos os dias. Da estação da Luz até a estação Prefeito Saladino eu levava em média 35 minutos, mas nesse dia o tempo custou a passar. Eu levava comigo um livro, uma biografia não-autorizada de J.D. Salinger, o autor de O Apanhador no Campo de Centeio. Consegui ler um ou dois capítulos e o resto da viagem fiquei olhando sempre que possível para uma morena com jeito que chegava do Perú. Tinha lábios grossos, cabelos negros que escorriam até o final das costas e usava um pano na cintura que parecia uma saia, mas por baixo um jeans apertado ajudava a esconder um corpo com certeza criado na terra e no sol de alguma vila peruana. Ela carregava uma bolsa de pano ao lado do corpo, aquele tipo de bolsa bordada e colorida, feita com lã grossa de algum tipo de ovelha peruana colorida e se essa moça não tivesse esses traços de terra ou se fosse alguma loirinha de olhos claros e peitinhos apontando para o leste, eu com certeza a teria confundido com algum tipo de hippie , mas estava na cara de que não era disso que meus olhos falavam; aquela garota com certeza tinha uma história a ser contada e era isso que me deixava doido enquanto olhava pra ela.

Alguém estava jogando sal nas costas da lesma que é minha imaginação. Comecei a pensar que deveria haver uma flauta, algum tipo de flauta, naquela bolsa, mas a bolsa era tão pequena... Talvez a flauta fosse dobrável. Desci do trem. Ela ficou me olhando enquanto eu descia. Vai ver era muda e falava através das notas da flauta.

Olhei no relógio. Já eram 22:00. Fui ao orelhão e fiz um interurbano pro Orlando. Ele atendeu rápido:

- Oi Pedro!

- E ai Orlando. Escuta, tenho que ser rápido, você pode me encontrar na internet daqui
meia-hora?

- Tudo bem, em vinte minutos.

- OK.

Fui até a banca de jornal da Estação Rodoviária. Era véspera do feriado de Corpus Cristi e a estação estava cheia. Essa estação é engraçada, porque passa a maior parte do ano deserta, parecendo uma estação fantasma, mas basta chegar um feriadinho de merda qualquer e ela fica cheia. Nesses dias geralmente dou a volta por cima, não gosto de ver aquele monte de mala, um monte de roupa, a maioria de um profundo mal-gosto. As mochilinhas a tira-colo com salgadinhos de queijo, refrigerante em lata e esse monte de lixo que as pessoas acostumaram a comer. Aquela euforia que tem os dias contados pra acabar - você passa na mesma estação alguns dias depois a tempo de pegar os ônibus retornando e vê a cara dos mesmos coitados que a menos de três dias atrás estavam ali e rapaz, vou te falar, dá dó. Porque aí todos sabem o que vai se seguir, mais alguns meses de trabalho ininterrupto, sem nenhum feriadinho de merda pra trazer uma gota de alegria pra essa gente sofrida. Mas lembro que peguei uma coisa legal nesse dia. Uma garotinha que estava saindo da banca com a mãe:

- Mãe, hoje já é feriado?

- Não filha, só amanhã.

- E por que a gente vai viajar hoje, papai disse que a gente só ia viajar no feriado.

- Vamos filha, nosso ônibus já tá lá.

- Quem é que faz os feriados, mãe?

- Anda, Estela, a gente vai perder o ônibus!

- É Deus, mãe?

- Ai, Estela...

A pequena era divertida pra caralho, quer dizer, era divertida ali naquela situação. Eu nunca quis ter um filho. Eu mal consigo cuidar de uma planta.

Entrei na banca e pedi um computador pra usar a internet. Uma garota branquela e afobada estava com uma pilha de jornal nos braços e mal me olhou pra dizer que estava fechando. Ela não era nada mal, mas era realmente bem branca. Enquanto não inventarem umas bancas com teto solar esse problema não vai ter solução. Elas vão continuar brancas e vão continuar a não olhar nos olhos da gente direito enquanto falam. As vezes penso que elas fazem isso porque tem vergonha por serem tão brancas e no entanto não deveriam, porque não é culpa delas, é culpa das bancas que não tem teto solar.

Corri prum orelhão e cancelei o encontro virtual com o Orlando. Tive que adiar pro dia seguinte.

3 comentários:

Luciano Costa disse...

surpresas e amores nas curtas viagens de trem. muito bom.

Roberto disse...

Olá Daniel,

Não acompanho como funciona esse negócio de levar bike em trem. Mas acho que é um tema bem interessante de se explorar. E um espaço bem legal de conquistar. Vou até dar uma olhada nas regras disso aqui no Brasil.
Abs!

Anônimo disse...

Sonhei com vc hj.