A Queda

Eu tinha 26 anos quando caí nesse buraco. Por incrível que pareça hoje tenho 31 e ainda estou caindo. Nesses cinco anos aconteceram tantas coisas que não fui capaz de guardar todas na memória. Ainda assim me lembro de muita coisa.

Certo dia encontrei com um médico que também estava caindo e ele me disse que essa relativa perda de memória era muito comum em casos como esse porque a velocidade da queda faz com que o sangue fique muito mais tempo na cabeça do que deveria. Ele me ensinou um truque que tenho feito até hoje e que resolveu em parte meu problema de memória, o que torna possível contar as partes mais importantes de tudo que mudou em minha vida desde quando dei o tal do passo em falso: dia sim dia não fico de cabeça para baixo por aproximadamente 20 minutos. Isso deixa o cérebro descansar do excesso de sangue acumulado.

Fiquei muito grato ao doutor por me prestar tal ajuda e aliás, fico grato por todas as pessoas que tem caído nesse buraco e que hora ou outra vem ter comigo, me ajudando a suportar os longos momentos de solidão a que ficava exposto, bem no começo da queda, no primeiro ano talvez, isso é claro, antes de conhecer a Fabi, com quem vivo até hoje.

Fabi caiu no buraco um pouco depois de mim, na verdade quase um mês depois. Ela estava viajando, de férias com o marido e seu filhinho e de repente sentiu como se o chão sumisse de seus pés. Quando a encontrei já havia passado o susto e ela assoviava distraída. Precisei gritar para que me notasse, mas quando a gente está caindo as palavras caem também e fica difícil se comunicar, porque cada coisa tem uma velocidade diferente pra cair. Aliás isso explica como pude me encontrar com a Fabi mesmo ela tendo caído um mês depois de mim. Descobri uma forma de diminuir a velocidade da queda, abrindo os braços e a boca ao mesmo tempo. Com isso reduzi minha queda e por obra do destino isso fez com que eu conhecesse a mulher da minha vida, o que foi minha salvação porque confesso que sem ela aqui não sei o que estaria fazendo.

Aquele primeiro ano que passei sozinho foi o mais duro de todos, principalmente porque morria de medo de saber que a qualquer momento o chão pudesse chegar e me pegar de jeito, mas foi também o ano em que tive que aprender a lidar com o novo rumo que minha vida havia tomado. Descobri como respirar normalmente, com a ajuda da barriga; como dormir, fazer minhas necessidades (todas de cabeça pra baixo e rezando pra não encontrá-las alguns meses depois), beber água e conseguir comida e tudo mais que precisava fazer para manter o mínimo do que pode se chamar de uma vida digna.

Me lembro ter amaldiçoado aquele buraco tantas vezes quanto possível, porque é um buraco que fica tão escondido que é praticamente impossível não cair nele. Hoje é justamente isso que faz com que ele tenha minha admiração e respeito porque não fosse essa eficiência não cairia nem metade das coisas que preciso para sobreviver nele, isso sem contar nas pessoas com quem fiz duradouras amizades e sem contar ainda com a Fabi, lindinha, amor da minha vida. Abençoado seja tu buraco e tua capacidade sagrada de sugar a tudo e a todos para as tuas belas trevas da qual hoje orgulhosamente faço parte.

Antes de encontrar a Fabi, tive mais duas namoradas, todas caídas. Fiquei com elas o máximo de tempo que consegui, mas tanto uma como a outra com o tempo ficaram insuportáveis porque nunca deixavam de reclamar por terem caído na `droga do buraco`(como podiam falar assim dele?) e que preferiam mesmo morrer e tal. Preciso me afastar de gente assim. Com as duas fiz exatamente a mesma coisa: abri a boca e os braços e elas, que não conheciam essa técnica ficaram me olhando lá em baixo praguejando minha habilidade em retardar minha queda. Mais tarde fiquei sabendo através de um garoto que foi a pessoa mais legal que conheci, que uma das minhas namoradas havia morrido quando uma faca caiu de ponta em seu pescoço. O buraco realiza nossos desejos. Eu mesmo já desejei muita coisa e tive todas elas.

Foi desejando que comecei a construir a pequena casa onde moro hoje com a Fabi. Primeiro encontrei as vigas. Saia todo dia assim que acordava e cada dia voltava com uma parte a mais da casa, enquanto a Fabi conseguia toda a água e a comida de que precisávamos. Quando tinha todo o material que precisava achei um manual que ensinava a construir casas de madeira. O resto foi fácil e hoje temos o que nunca tive antes de cair no buraco: nossa própria casa, é pequena, mas tem um quarto e uma dispensa onde guardamos a maioria das coisas úteis que achamos durante a queda.

Fabi agora está grávida do nosso primeiro filho. Já temos o enxoval completo. Fui eu quem deu a notícia pra mãe dela, por celular, embora preferisse que a família dela não soubesse que ela está viva e bem.

Minha precaução pode parecer egoísmo, mas nada impede que seu marido perca a cabeça e se jogue no buraco atrás dela.

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