Ele era um cara muito enrolado. O filho da mãe era bom. Nunca repetia uma lorota e tinha sempre uma estória mais maluca que a outra na ponta da língua e uma clientela de ouvintes fiéis: todo o pessoal daquele bar, perto do posto 5. Eles sabiam exatamente os dias e a hora em que ele aparecia. Já deixavam uma cadeira e uma cerveja gelada esperando por ele. Ali era tratado como um rei. Quando chegava, os caras do bar formavam uma roda de cadeiras ao seu redor, cada um com um copo de cerveja na mão e então ficavam todos em silêncio, depois de alguns uivos e assobios. Ele nem se intimidava, acendia calmamente um cigarro e ficava um tempão olhando pros caras.
Eu nunca tinha visto um bar tão silencioso. Quando entrei já estavam todos sentados em roda, do jeito que eu tinha ouvido falar. O bar estava cheio, mas fiquei sozinho no balcão, enquanto enrolava com um copo de vinho. Ouvi falar tanto desse cara que resolvi ir lá pra ver. Na verdade fui apenas porque não tinha coisa melhor pra fazer. Pelo menos uma coisa era verdade, o cara era respeitado ali: só ele falava, sentado no meio daqueles pais de família de camisa social, de calça jeans com um maço de free no bolso. Ele tinha o controle daquilo tudo. De repente começava a conversar com os caras da roda e quando menos se percebia ele já tinha começado uma nova história. O dono do bar então desligava o rádio e se juntava à pequena multidão.
De onde eu estava não dava pra ouvir tudo, mas vi que ele fazia umas perguntas meio estranhas pros homens dali, que respondiam sem titubear. Perguntas do tipo: 'o que você mais ama na sua vida?' (um dos caras respondeu que era a cerveja e uma dúzia concordou com ele) ou 'qual o maior sonho de sua vida?' (o mesmo cara disse 'presidente do brasil' e dessa vez só dois concordaram com ele). Eu tinha a impressão de que ele era capaz de chamar todos ali pelo nome. Era um sujeito cativante de verdade. Tinha uma barba por fazer e não era possível dizer se tinha 30 ou 50 anos.
De repente ele se levantou e aí consegui ouvir com nitidez sua voz rouca ecoando pelo bar:
- Já contei pra vocês de quando me encontrei com Deus?... Pois bem, não faz tanto tempo assim. Mas minha barba era um pouco menor e eu não tinha esses fios brancos aqui...
Ele começou a sacudir a cabeça na frente de todos e os homens riam e pediam pra ele continuar .
- Foi num dia que estava dando aula na faculdade. Durante o dia todo pude enxergar umas luzes estranhas passando pela janela da sala. O esquisito é que parecia que apenas eu podia vê-las. Consegui me conter e não comentei com nenhum dos alunos sobre aquilo. Na saída, quando fui pegar meu carro na garagem percebi que ele não estava no lugar onde eu o havia estacionado. Estava umas duas vagas pra direita e nele havia um homem sentado. Quando me aproximei o homem desceu do capô com um salto e me cumprimentou com um gesto esquisito. Um pouco nervoso, perguntei se não havia um lugar melhor pra ele ficar sentado, mas antes que eu terminasse de falar ele me sorriu e perguntou se não lhe daria uma carona até os limites da cidade...
Nessa altura meu vinho já havia acabado e eu não tinha como pedir outro, porque o dono do bar estava grudado no contador de estórias. Estiquei o braço e enchi o copo com água da torneira, só pra ter alguma coisa pra beber. Aos poucos eu também estava ficando entretido na conversa do cara.
- ... no começo ele não dizia nada, só ficava me olhando dirigir. parecia que o sujeito nunca tinha entrado num carro. Assim que saímos da parte urbana da cidade ele virou e disse: "eu sou Deus!" e aí eu dei risada e falei "e eu sou o Peter Pan" e aí ele riu mais alto que eu. Uma risada louca e barulhenta que gelou meu corpo todo. E então ele perguntou se eu duvidava e eu disse que não e ele riu de novo aquela risada maluca e desapareceu, assim, do nada, e de repente apareceu de novo no banco de trás do carro. Eu soltei um "caralho!" e ele repetiu "caralho" e colocou a mão no meu ombro e disse "cara, como vocês são engraçados, eu já havia me esquecido". Foi nessa hora que eu percebi que ele era mesmo Deus e aí entrei em pânico. A gente acha que quando encontrar com Deus vai fazer um monte de perguntas inteligentes ou vai abraçar ele e ser engolido pelo cosmos, mas na hora não me passava nada pela cabeça e a única coisa que eu consegui fazer foi perguntar se ele tinha um cigarro. Nem me lembrei que provavelmente Deus não fumava... Pra mim deus nem existia e agora ele estava no banco de trás do meu carro sacando um L&M light e acendendo pra mim não ter que parar de dirigir...
Os caras em volta da roda nem piscavam. Eu não sabia se ia embora, se mandava ele parar com aquilo ou se puxava uma cadeira e entrava na roda. O cara não parava. Parecia que tinha entrado num transe.
- ... fiquei um bom tempo sem conseguir falar nada, só tragando o L&M que ele tinha me dado. Foi ele quem puxou assunto. "E aí, que tem feito de bom?". E eu: "voltei a dar aulas na faculdade". "Bom, bom...hei, que tal se a gente parasse um pouco depois dessa estrada? Andar de carro me enjoa". Aí eu disse que tudo bem e parei o carro onde ele tinha falado. Eu estava morrendo de medo. Mesmo assim nos sentamos perto de um laguinho mixuruca que acompanhava aquele pedaço da estrada e ficamos lá em silêncio. Fiquei tentando me lembrar de alguma pergunta pra fazer pra ele, mas não me lembrava de nenhuma. Ele ficava arrancando uns matinhos com a mão e as vezes esmagava umas formigas com a ponta dos dedos. De repente ficou me olhando e o silêncio já estava ficando insuportável quando eu criei coragem e perguntei: "existe mesmo um céu e um inferno?". "Existe, mas talvez não como você imagine. De qualquer forma, eu moro no céu". E ele riu de novo aquela risada insana e começou a arrancar mato que nem um doido e eu quase levantei e sai correndo.
Nessa hora ele parou a estória e começou a caminhar pro meu lado, me olhou nos olhos e esticou o braço por trás do balcão e voltou com uma cerveja pro meio da roda. Ninguém dizia nada. Olhei atrás do balcão e vi que tinha uma meia dúzia de cervejas ali e peguei uma. Depois eu pagava. Ele já ia voltar a contar.
- Ficamos um bom tempo sentado ali. De vez em quando ele começava a assobiar e uma das músicas eu reconheci, era 'This Charming Man' do Smiths. Sem parar de assobiar ele levantou e perguntou se ficaria ruim pra mim levá-lo até o centro da cidade novamente. Eu fiz um 'ok' com a cabeça e voltamos pro carro. Ele entrou e colocou o cinto e não disse nada o caminho inteiro. Quando chegou na praça do centro ele saltou e antes de virar e ir embora, tirou o L&M do bolso e me deu: "eu não fumo", ele disse sorrindo e me mostrando seus dentes brancos de deus. Aí saiu com uns pulinhos e depois perdi ele de vista. Fiquei aliviado por ele ter saído do carro, mas foi só ele ter saído e começaram a aparecer um monte de perguntas na minha cabeça que eu gostaria de ter feito pra ele. Fui prum bar e tomei um porre. Mas um porre fudido mesmo, pra não ficar pensando naquilo. Duas semanas depois pedi demissão na faculdade e não voltei mais naquela cidade...
Parecia que ele tinha acabado. Alguns caras levantavam e iam cumprimentá-lo enquanto ele se apressava em colocar seu casaco e tomar o resto da cerveja que ainda estava no copo. Os caras começavam a desfazer a roda de cadeiras e a ir embora. Ele passou por mim e eu abri a carteira e deixei o dinheiro em cima do balcão e sai logo atrás dele. Comecei a segui-lo e esperei todos os caras saírem de perto dele. Cheguei ao seu lado e disse:
- Eu fico até sem graça de perguntar, mas aquilo que você contou... aconteceu mesmo?
Ele parou. Eu via as gotas da chuva caindo por cima de seu chapéu. Aí ele levantou o chapéu e eu pude ver seus olhos azuis me fitando. Parecia os olhos de um bicho, de uma raposa. Ele encheu os pulmões de ar:
- não.
E continuou andando.
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