terror caetano

oh cidade que me destes câimbras
tuas ruas são curtas e teus prédios altos demais
faltam espaços onde esticar o olhar *

A calçada é fria e suja, mas já nos acostumamos ao frio, já nos acostumamos à sujeira. O pobre Billy ao lado continua fazendo nós num cordão grosso que carrega junto ao pescoço. "Esse nó amarra um navio" - ele diz. A segunda garrafa acaba. A rua começa a ficar silenciosa. "É a sua mente que tá ficando silenciosa" - agora é Bob quem fala. Todos querem falar comigo. Estou indeciso se entro na conversa - prefiro sentir meus lábios fechados em silêncio, formigando pelo álcool, pois não há nada que eu queira dizer a eles.

Então de súbito a dúvida passa. Alguma coisa me desgruda do chão como se eu fosse um pingo de tinta redondo e seco que ali estava grudado, me separa do pequeno grupo que bóia na calçada, segurando as garrafas baratas feito tábuas despregadas do casco de um navio pós-naufragio, como se elas fossem impedí-los de afundar em sua própria miséria. Abandono eles feito Jesus andando sobre as águas, aliviado por eles não serem meus discípulos.

Saio correndo disparo noite adentro, não sinto minhas pernas e parecem não me fazer falta - sei que não vou voar porque cintos e calças e meias não voam; se quisesse ter alguma chance teria que estar nú mas a cidade é traiçoeira e tem uma câmera em cada bueiro, tropas especiais treinadas tapadas e trepadas na copa de árvores, atiradores de elite em tetos de ônibus. A cidade é tão sisuda que aqui até os animais trabalham para ela: pombos informantes, cachorros vigias, gatos que te espiam durante a madrugada e pela manhã miam relatórios sobre os possíveis voadores da próxima noite: miau, miau, miau...

Continuo a correr e entro num shopping. As pessoas se agitam em frente as vitrines. Tenho um pouco do combustível que move elas em meus bolsos; elas não tem uma gota do combustível que me move. Subo as escadas rolantes ignorando o mecanismo que nos leva adiante (corro por conta própria e chego antes da escada) e continuo até chegar ao último andar e quando chego, sem ter a mínima idéia do que fazer desço tudo de novo pela escada de emergência, tropeçando como um maníaco pelos degraus.

Saio do shopping e me atrevo a atravessar a rua. Alguma coisa pesada como um elefante bate em mim. Adormeço.


INTERVALO


Já passa da meia-noite e estou num hospital frio e deserto - a essa hora apenas os serviços de emergência funcionam. Grande parte das salas estão fechadas e os corredores estão escuros. Nas paredes há aranhas e fantasmas - fantasmas estendidos pelo chão esperando a eternidade para serem atendidos.

Na minha espera acabo conhecendo os velhos frequentadores do hospital. Até de madrugada é possível encontrá-los por aqui. "Tem boas revistas e não cobram pelo café" - me diz um deles. Vêem aqui esperar a morte, eu penso. É como esperar pela chuva dentro de uma piscina, ainda que em sua maioria já estejam mortos.

"Quando descobriram onde as ratazanas faziam ninho, os miseráveis não mataram" - outro velho começa a delirar "injetaram um líquido nelas que faz com que à noite elas brilhem enquanto correm pelos corredores à caça das partes amputadas que os médicos de plantão esquecem dentro das salas & consultórios" - quem fez isso?, eu pergunto "Como as ratazanas brilham, o hospital economiza com iluminação" - o velho baba enquanto me conta e seus olhos giram assustados batendo contra o teto e caindo de volta ao chão - posso compreender sua aflição, pois o teto é idêntico ao chão. Ele se segura na cadeira enquanto fala comigo, parece o tempo todo que vai despencar. A baba escorre pelo seu queixo e ao invés de cair despenca pelo pescoço formando estalactites. "O pobre vigia conta apenas com a luz emitida pelos monstros para patrulhar o hospital à noite. Vez ou outra, elas o atacam. Ele já não tem os dedos do pé, elas comeram todos."

E por que fizeram isso com as ratazanas? - eu pergunto.

"Porque aqui dentro quem manda são ELES" - eles quem? por Cristo, devo estar ficando louco, estou conversando com um fantasma "Você chega doente e acha que vai ser tratado. Não desconfia que vai ser uma cobaia dentro da noite. Eles colocam soro na sua veia para que seu sangue fique mais ralo, mais aguado; pessoas com sangue fino não são capazes de se rebelar, porque a partir daí seu sangue ferve, como o dos outros, mas ao invés de explodir, como seria o normal, ele evapora e então você começa a suar. Sai daqui suando feito feito um porco, achando que foi CURADO". Ele ri. "Por Deus, no máximo você foi CURRADO"

Me levanto e largo o velho desmaiado na cadeira. Sei que vou encontrá-lo novamente porque ele está em cada corredor - é ele quem embolora as paredes e gruda as teias de aranha. É ele quem geme nas camas mesmo quando o hospital está vazio.

Entro num corredor todo azulejado e chego à uma recepção. Não há ninguém para atender. Os telefones estão mudos e há cartões de crédito espalhados pelo balcão. A sala é mais fria que as outras e pelo tubo do ar condicionado escapa uma música grossa que faz com que seja difícil caminhar na sala - ela se enrosca em minhas pernas e tenta a todo custo me derrubar - maldita música, talvez o velho esteja certo, ELES mandam nisso aqui - começo então a socar as portas, uma por uma - são seis ao todo. Soco as portas e grito, mas por mais alto que grite a música sempre me vence e então, exausto, desisto.

"Você precisa de ajuda" - é o velho novamente, dessa vez parece estar nú mas não tenho certeza porque a música esconde parte do seu corpo. Sua voz soa diferente, mas é o mesmo velho que larguei na outra sala.

Sim, preciso de um dentista - minto. Mas nem eu acredito no que digo. Eu não preciso de um dentista. Eu não sei do que eu preciso. EU NÃO SEI O QUE ESTOU FAZENDO AQUI.

O velho ri."Aqui nem sempre foi assim, percebe?" - ele continua a falar, e aponta para as cadeiras vazias. "Você pode ver no rosto deles. Estão todos infelizes" Não vejo ninguém nos bancos e sinto um alívio por não ver. "As pessoas vinham aqui recuperar sua saúde. Mesmo os que partiam iam felizes de encontro a um destino. Será que alguém aqui ainda acredita em mim?" - e diz novamente olhando para a platéia que espera sentada atrás de mim. Não me atrevo a virar. Ele parece esperar por uma resposta. Está discursando para um monte de pessoas mortas. "Eu já fui feliz AQUI. AQUI curei pessoas. AQUI amei pela única vez em minha vida. Amei pela primeira vez num hospital. Nesse hospital..." Uma voz interrompe o velho. Então ele era médico. A voz vem das minhas costas e fala pausadamente, como se estivesse compondo um haikai:

"nada mal, doutor
quando se sabe que o amor
é um tipo de dor"

Ele parece não escutar e continua. "Lembro quando conheci..." - mas faz uma pausa. Fecha os olhos e permanece em silêncio mais tempo do que eu esperava. "Minha enfermeira, minha mulher..." - tentou novamente. Ele não se lembrava o nome da enfermeira. "OH DEUS!" - enfim ele grita e a expressão de dor em seu rosto mostra o quanto sofre por não se lembrar - o que na hora faz eu me sentir ainda pior. Eu, sempre tão displicente com a ausência de minhas memórias, com minha infância esquecida. Invejo a dor daquele velho que ao esquecer o nome da mulher que amava parece esquecer o motivo de estar ali, irado, pelado e debilmente exausto à minha frente.

Ele então se curva, sua boca já murcha se esconde ainda mais para dentro, deixando um buraco em seu rosto. Um olhar ausente cai como cortina abaixo de suas pálpebras brancas e peludas feito pequenas taturanas - e como pequenas taturanas elas rastejam e pulam fora daquele rosto perturbado como marinheiros deixam um navio que afunda.

"Já não tenho mais nada. Mas você ainda pode, Pedro" - ele sabe meu nome - "Você só precisa se lembrar. Você nunca devia ter vindo aqui e vai ter que voltar, mas não agora. Basta que se lembre. Há uma vida à sua espera, fora desse lugar. Isso não é um hospital, Pedro... Vá embora antes que seja tarde" - e falando me estende a mão, eu a pego e seu braço se solta e cai no chão à minha frente! O velho recua de costas me pedindo desculpas e ao mesmo tempo, uma ratazana fluorescente passa por cima do meu pé, apanha o braço morto no chão e corre para dentro dos tubos de ar-condicionado.

Começo a ficar assustado com as coisas que o velho disse. Não me lembro como vim parar aqui. Fecho os olhos e tento me lembrar - não sei ao certo de que - mas sigo a orientação que o velho me deu e tento me lembrar - do que quer que seja, do que for possível - a música alta entra pelos meus ouvidos, pela minha boca. Quer me afogar! Preciso me lembrar! Digo a mim mesmo. Digo em silêncio pois não consigo mais abrir a boca e então as imagens começam a surgir, devagar - sou eu correndo pela rua, ainda criança, com um sanduiche nas mãos e uma camisa gasta - mas a imagem não se completa e começam a surgir outras cada vez mais rápido - agora ainda criança sentado no telhado da casa dos meus pais numa madrugada e não sei como subi lá, apenas fico olhando os carros minúsculos lá embaixo e a tranquilidade das árvores em paz, protegidas pela escuridão - não consigo me deter tempo suficiente em nenhuma e isso me deixa confuso, meu estomago se contorce inteiro. Parece que vou desmaiar quando a música se torna finalmente insuportável e me traga pra dentro do tubo de ar-condicionado...

A música pára. Posso ouvir seu silêncio. Aos poucos surgem vozes. Abro devagar os olhos mas logo tenho que fechá-los - pingos d'água caem sobre eles. Estou com o corpo todo molhado, deitado sobre o asfalto. Há sirenes e pessoas me olhando.

venta (1)
o vento tem cheiro de menta
eu beijo o vento

estou vivo de novo.






(1) O velho estava certo, eu só precisava me lembrar.

Na foto, a estátua mais sexy de São Caytano. Pode ser vista todos os dias na esquina da Avenida Goiás com a Avenida Kenny G. Ao que me parece ela se mantém de olhos fechados pois há cada vez menos coisas que valham a pena serem vistas na cidade.
* O poema, logo abaixo da foto, é de sua autoria.

5 comentários:

Cestas veg-orgânicas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Quanto barulho, estou confusa, há sirenes pelo ar, um pó de Poe, um bueiro psicanalítico, um eira com beira.

Mexeu. Adorei.

Um fluxo!
Luanda

Murilo Costa disse...

lembrei do seu blog esses dias e voltei aqui pra ler as coisas novas e reler as antigas. foda demais, cara.

lembro de alguns textos mais antigos seus, que não tão mais aqui.

Unknown disse...

opa, meu nome é dennis, sou amigo da tomate, fui vizinho dela no impróprio e cagava do lado do seu texto todo dia, rs.

ela me mostrou seu blog há um tempo. Gostei da mistura com os haikais, ficou muito bom. Gosto de como sua imaginação atira para todos os lados e gostei muito das falas dos personagens. E tem uma espontaneidade bem legal, também, que me ajuda a seguir os caminhos da mente deles. To experimentando agora usar a primeira pessoa no presente, e seu texto é uma boa referência.

curti mesmo. Só falei esse monte de abobrinha para não ficar só no "ai, que fofo" rs. Espero não ter sido chato.

abraços

Luciano Costa disse...

a sufocante terror caetano.