CONCHITA,

PRECISO APRENDER A GUIAR. VOU FAZER UMA VIAGEM AO MÉXICO. SE COMPLETAR A VIAGEM FICO COM O CARRO E RECEBO TRINTA MIL. POR ENQUANTO SÓ POSSO DIZER ISSO. PODE ME AJUDAR?

Juan Cárlos havia deixado o bilhete em baixo da porta do quarto de sua irmã. Conchita viu o bilhete pela manhã. À tarde já estavam juntos no carro, com Juan ao volante.

"Ponha seu melhor vestido, Conchita."

"Reze umas novenas, Juan."

Que a polícia não os incomode. Amém!

Ao partir, Juan Cárlos se dá conta de que escondeu a viagem da mãe. Conchita ajudou. "Ela jamais aprovaria".

No primeiro dia de viagem a mãe, que está velha e cansada apostando com a cachorra da casa quem vai morrer primeiro, recebe a visita de duas garotas. "Maria". Juan Havia falado dela, mas espere falta alguma coisa, ela não se chamava apenas Maria. É a vez da outra amiga se apresentar. "Paula". Oh, que coincidência, era esse o nome que Juan havia falado: Maria Paula. "Vocês são irmãs?". "Não, apenas amigas".

A mãe continua velha e anda como pode até a cozinha para buscar alguma coisa que adoce a boca e aqueça o coração das duas jovens. Volta com café preto e rosquinhas gordurosas. Fica reparando nas moças "por Deus, como elas são parecidas". Já nem sabe quem é Maria, quem é Paula.

"Com licença, se me dão, vou ao quarto mas não demoro. Fiquem a vontade, a Peteca não morde"

Sim, é verdade, a Peteca mal respira.

As linhas da vida que começam nas mãos da velha mãe vão terminar lá pros lados do pescoço. Ah que vida longa e cansativa. Juan não foi um rapaz fácil de criar. Abre as gavetas do filho, onde ele guarda as fotos. Remexe, remexe e acha as fotos da namorada. Hum, havia mesmo feito confusão, a namorada é a mais alta, não a mais baixa. "A namorada é a Paula". Mas se lembra de Juan falando: "Mãe, namoro a Maria Paula. Um dia trago ela aqui". Continua remexendo nas fotos e acha... "Agora ele está todo agarrado com a outra, a mais baixa". Remexe, remexe. Plin! Juan Cárlos abraçado com as duas moças, vira a foto, no verso vem escrito: ANIVERSÁRIO DE NAMORO: JUAN CÁRLOS & MARIA PAULA.

Por Deus, assusta as moças quando abre a porta do quarto feito um trovão rachando lenha. Passa direto por elas como um fantasma atravessando uma parede. Está procurando a cadela. Precisa falar com a cadela. "Peteca, sua sem-vergonha, você ganhou, eu vou primeiro, eu vou antes que o desgraçado do meu filho chegue mas antes te peço um último favor. Levante essas tetas do chão e expulse aquelas duas raparigas da minha sala".
A Peteca mal respira.

"Levanta, Peteca!"

Necas, a velha tem sorte. A cachorra perdeu a aposta. A velha perdeu a paciência. Volta feito maré brava pra dentro da casa. Encara as duas moças sentadas no sofá feito passarinho em poleiro.

Maria se levanta (ou foi Paula?). Estica o dedo fino com a ponta pintada pra cara da mãe. "A senhora deveria ser mais humana. Como pôde deixar seu filho fazer uma viagem dessas?".

"Do que você fala, galinhazinha de merda? Meu Juan está trabalhando na casa de um primo do interior. Juan pode ser um cafajeste mas vagabundo ele nunca foi"

"Velha burra. Seu filho foi pro México!"

"Pra onde?" Ela podia até ser surda, mas tinha ouvido. E sabia onde ficava o México. Tinha assistido Mari Mar. Tinha assistido Maria Mercedes.

"E o que ele foi fazer lá?"

"Aposto mesmo que a senhora não sabe". Paula (ou era Maria? Ah, se as duas ficassem em pé daria pra saber quem era quem, porque Paula é mais alta) esticou ainda mais o dedo. A luz do teto brilhava na ponta de sua unha pintada, ofuscando a vista embotada da mãe, agora mais curvada que árvore atacada por cupim.

"Eu vou te dizer, dona Carmencita. Seu filho vai voltar sem um rim do México. O Outro vai ficar lá num saco de gelo. Foi esse o trabalho que ele arrumou."

Sua vista girou pela sala inteira, tudo girando devagar. Quantos detalhes tinham a parede, quantas manchas que vinham sendo esfregadas há anos e continuavam lá. Mas quem queria que elas fossem embora? "O que seria de mim sem essas manchas?". Agora ela apenas pensava. A boca não tinha mais vontade de abrir. Sentia uma ânsia tão desanimada que nem sequer podia vomitar. "Tanto faz. Será que sempre tudo esteve girando assim e eu não percebi? Talvez eu estivesse girando junto. E por que parei?"

"Desculpe dona Carmem". Agora Paula se desculpava em choro. Sim, e era mesmo Paula porque Maria também estava de pé. E lado a lado se sabia quem era quem, porque Paula era mais alta. Era um fio de cabelo mais alta. "Me desculpe, dona Carmem". Maria também se desculpava.

"Por que tantas desculpas?". A velha mãe continuava a pensar. "Culpa de quê tem vocês? Na minha idade achei que não tinha nada mais para ver e a vida teima em me surpreender. Nasci ignorante, morro não muito diferente. Nada posso fazer a não ser aceitar. Aceito as manchas, aceito a namorada do meu filho, as duas, aceito a morte da Peteca. Que tudo seja como deve ser. Nunca mais terei surpresas, porque de nada mais duvidarei".

Deu seu último giro pela sala, quando chegou ao teto viu seu corpo inteiro refletido na unha da moça, que tremia. Escorreu pela parede e sentou-se calmamente na grande poltrona. Não havia diferença entre ela e aquelas manchas. Era uma grande mancha, feliz em ser mancha. Teria quatro mãos para lhe esfregar.

Morreu em silêncio. A boca sem nada pra falar.

Hoje em dia Santa Carmencita da Aceitação costuma ser invocada nos casos de filhos sumidos. E também quando surgem manchas difíceis, daquelas que de nada adianta esfregar.

5 comentários:

Anônimo disse...

começou o ano bem!

Danilo disse...

Sensacional, sempre achei que o mundo fosse uma grande mancha!

Luciano Costa disse...

muito bom pedro-tito-daniel

Unknown disse...

Bravo!!!Bravo!!!! Maravilhoso...

maga disse...

el duran.