NUMA DANÇA SEM MÚSICA

comecei o dia correndo pra casa de ana, que é a garota em torno da qual esse pequeno planeta que são minhas más intenções está girando. chamei ela igual a gente chama por socorro quando tá caindo num precipício ou quando um trem tá chegando e você tá amarrado nos trilhos, sabe? ela veio igual uma mãe pronta pra acodir um filho que acaba de martelar o dedo, enquanto eu gostaria que ela viesse feito uma bombeira mexicana que surge de roupa colada no corpo pra apagar o fogo de um latino americano que acabou de viajar o continente inteiro de carona, lutando com cobras e negociando barganhas com o sol pra chegar vivo até sua casa. mas tudo bem, afinal eu não estava ali pra viver nenhum dos meus sonhos, nem o mais estúpido deles. eu estava ali, comecei a explicar, pra tomar o primeiro porre depois de cinco anos de abstinência pacífica e eu fazia questão - deixei isso bem claro - que ela participasse desse momento tão fodido. ela ficou me olhando como quem olha pra uma pintura abstrata chamada 'figueira fugindo em chamas' ou outro nome qualquer e de repente entrou correndo pra dentro de casa e voltou mais rápido do que seria humanamente possível, com uma jaquetinha a tiracolo, uma bolsinha e nada mais. comecei a suspeitar que eu sofria de sonambulismo e que na noite anterior havia acordado, ligado pra ela e contado todos os meus planos. eu continuei desconfiado por um bom tempo, mas lá pelo meio do caminho desisti dessa idéia, primeiro pelo jeito que ela me abraçava e segundo porque me lembrei que eu não tinha telefone em casa. nessa época eu ainda era movido à sol e como tinha bastante dele nas nossas costas eu corria que nem um maluco e quanto mais eu corria mais perto de mim ela ficava. oitenta, cem, mais que cem e cada vez sentia melhor os contornos de um corpo jovem e sagrado bem atrás do meu e nessa hora pensamentos hereges me invadiam, entravam pela minha garganta e causavam um verdadeiro motim no meu estômago. eu não tinha a menor necessidade de beber, mas era uma idéia romântica e cheia de significado praquele dia. não conversamos durante a estrada, o vento não deixava, roubava as palavras da nossa boca e as despedaçava contra o asfalto, com uma fúria de dar inveja ao mais violento dos deuses. quanto mais a gente se envolvia com a estrada mais árvores iam aparecendo do nosso lado e a neblina logo se intrometia entre nós. a cidade, do jeito que a gente conhecia, aos poucos ia ficando pra trás e um novo ar era apresentado. eu não tinha nada na cabeça. nada, nem planos nem idéias nem vontades nem segredos nem porra nenhuma, apenas um vazio que me cheirava bem. depois de algumas horas chegamos na primeira rua da cidade onde íamos passar a noite. então percebi que ela não fazia ideia de onde eu a estava levando. eu mal me dava conta do que estava acontecendo e novamente era tarde demais pra pensar nisso. era uma coisa que não tinha importância nenhuma. até que me provassem o contrário minha vida estava acabando a cada segundo que se passava e eu não podia dar margem às minha tendências de arrependimento que tanto me assolavam, como fantasmas tristes dentro de uma casa abandonada, vivendo o susto dos outros. eu não era eterno e aqueles momentos iam pagar caro por isso. eu queria viver meu limite e acho que de alguma forma ela queria o mesmo, embora até hoje eu apenas possa supor isso. entramos numa grande adega, que fica bem na entrada da cidade e sem muito capricho começamos a perguntar o preço de tudo. já tinha ficado decidido que ela é quem escolheria as cerejas dessa noite, que iam nos levar aos nossos paraísos artificiais. colocamos tudo na minha mochila, que ela carregava, e voltamos pra mais um pedacinho de estrada, até a praia que ia servir de palco pras forças do universo conspirarem à nosso favor. era uma praia de areia grossa, que massageava os dedos, e se eu tivesse tirado uma foto a areia teria ficado negra e macia, mas há muito tempo eu havia prometido que não mais tiraria fotos, assim ficava com as mãos livres e de quebra meus netos teriam que acreditar apenas nas minhas palavras quando contasse histórias assim pra eles. encontramos umas pedras bem negras no fim de uma trilha, as pedras ficavam de frente pro mar e as ondas vinham quebrar na última delas, a maior. eu me sentei primeiro e ela ficou molhando o pé na água, que vinha cheia de espuminha. dentro de pouco tempo eu ia ceder à minha loucura e provavelmente seria atingido por um raio. ela continuava alheia a tudo, de vestido preto e com os pés molhados. eu me perdia naquele vestido. é claro que ela sabia disso. eu me imaginava dentro dele. eu me imaginava dentro dela. eu na verdade tentava não pensar em nada disso porque eu sabia que esse tipo de pensamento atraía raios e me ocupava arrumando pequenas pedras em torno do fogo, que começava a acender. sentei de pernas cruzadas com as costas apoiadas numa pedra e ela veio saltitando até chegar ao meu lado e me servir uma bebida roxa e pesada. começamos a beber enquanto qualquer vestígio do que foi um dia claro ia embora. o fogo, agora mais forte estalava e chiava - ela estava em paz e seu rosto enunciava serenidade. me dava impressão de que estava a par de todos os segredos do mundo, de que deus a tinha como cúmplice e a convidava todos os domingos à noite pra tomar chá com ele e fofocar noite adentro sobre tudo que ele sabia sobre esse formigueiro que ele mesmo havia criado. ela abriu a bolsa e enquanto comecei a morrer de curiosidade pra saber o que ela tinha trazido, ela puxa um incenso. na bolsa inteira só tinha um incenso. ela fazia incensos e esse era um que ela tinha feito. ela só acendia os incensos que ela mesmo fazia porque tinha medo que eu tentasse enfeitiça-la com algum incenso mágico. a nossa boca começou a formigar e nossas pernas sumiram e dava a impressão que se ventasse a gente ia voar. ela era a única pessoa que tinha as mesmas sensações que eu quando bebia. conversávamos com enxurradas de palavras e um atropelava o outro e remediava tudo com desculpas e risadas. eu não estava mais preocupado com nada. o mundo tinha acabado e só tinha restado aquele espaço até onde meu campo de visão enxergava. e eu enxergo mal, até hoje eu enxergo mal. não tinha sobrado muito, apenas o suficiente. a gente sabia disso. podíamos ter um futuro maravilhoso, não agora, mas antes das merdas que são as coisas que dão errado, acontecerem. eu já tinha errado demais e de uma maneira brutal tinha aprendido uma parte da lição. eu sabia que não tinha futuro e na verdade nem presente para nós dois. não sei o que eu estava procurando aquela noite, naquela praia, mas tinha uma certeza: o que quer que fosse eu não iria encontrar. e apesar de tudo eu estava feliz. o vinho tirou meu excesso de lucidez e eu havia me entregado àquele momento sem querer nada em troca. meu altruísmo havia atingido níveis cósmicos e eu emanava energia pacífica.

Um comentário:

Unknown disse...

fodido! do começo ao fim! queria ter escrito isso!